Sempre que a meditação se faz no Sítio União, sentimos um apoio que vai além, mas está também no canto das cigarras, é uma mistura de som e de côr, de sol, dos insetos e pássaros que cantam, da brisa que passeia entre nós como que para realçar uma frase dita, ou para deixar o pensamento mais leve.
A brisa e o sol no terraço de Fátima também nos assinalaram a necessidade de intervir na natureza para que ela viceje, floresça, frutifique... Pudemos senti-los chegando sem entraves depois de uma poda que havia sido feita na mangueira ao lado da varanda, e a vista que foi assim descortinada mostrava novas possibilidades, novos horizontes, uma interação mais profunda com o que estava em torno. E Telma recebeu a mensagem explícita de que seria bom haver uma poda na mata-jardim em volta para deixar o Sol-pai entrar, afirmando a vida.
Sua tradução do que a natureza estava pedindo foi misteriosa e precisa, cintilava com a linguagem verde da folhagem em volta. E apontava esperança, não só para a renovação da mata, mas também para os projetos de Fátima, a afirmação de seus sonhos.
Puxado por Telma, a temática de um paciente que atendo por msn se transformou no tema de cura de alguns de nós. Ele saiu de casa aos 16 anos, mais ou menos como o decidiu Tona, e isso nos remeteu aos nossos 16 anos. Viajei neste período da vida com um olhar mais condescendente para comigo, e notei que quase nada então me trazia a sensação de aconchego. Nem a casa onde morávamos, nem a escola em que eu estudava, nem as amizades ainda muito recentes (acabara de chegar da Argélia). E tentei imaginar como seria se eu já conhecesse, então, os anjos. Me lembrei que foi nessa idade que comecei a ter minhas primeiras aulas de violão, depois interrompidas, retomadas por duas vezes, novamente interrompidas... Acho que eu percebia minha professora, que era gordinha, como uma espécie de anjo, pois apesar do peso, movia-se com enlevo e trazia a tira-colo, junto com o violão, as canções que davam ar de feriado aos dias escolares, e a possibilidade de se expressar na linguagem comum da música, com canções brasileiras que conhecia, outras desconhecidas, mas que eram cantaroladas por todos. Pois a realidade me era muito estranha, mas as canções brasileiras haviam acompanhado todo o meu período de infância no exílio.
No terraço de Fátima, brincamos um pouco com nossas funções e profissões, os disfarces que damos a nossas atividades "terapêutico-espirituais", os entraves que erguemos entre nós e os outros, entre nós e nós mesmos. É mais fácil se dizer arquiteta, psicóloga, empresário ou professora. E o que hoje sentimos é que estamos sendo sutilmente chamados a atuar com um conhecimento renovado, até, porque não, nessas áreas em que nos formamos, criando novas vertentes e novos olhares sobre questões antigas ou recorrentes de nossa sociedade.
Lembrei-me de um amigo, que foi torturado e exilado, e que não conseguiu refazer sua vida profissional de volta ao Brasil, embora fosse muito inteligente e competente no que fez um dia. Lembrei de outro, também mineiro, exilado, médico, e que trabalhava em Argel nos postos de saúde pública no programa de combate à tuberculose. Ele me levou certa vez com meu irmão para vermos a sua consulta. Não falava bem o árabe, só dizia as palavras chaves, como "abra a boca" "tussa", que eu acabei também fixando. Enquanto escrevo aqui, me volta o ambiente de seu consultório, envolto numa atmosfera claro-escura, e acho que algo mágico se passava alí. Sem muitas palavras, por causa da barreira da língua, conseguia fazer uma consulta completa, e era um médico muito querido. Talvez, então, sem saber, eu tenha percebido que algo de diferente se passa quando há uma interação sincera entre terapeuta e paciente, algo que não passa pelas palavras.
A visão de profissão como uma atividade útil a sociedade foi muito clara para mim na Argélia, um país em reconstrução depois da guerra com os franceses (e hoje, um país um tanto dilascerado, apesar de estar relativamente bem economicamente). Enquanto nos questionamos sobre nossas atividades (ou somos questionados) e seu alcance "prático", me dou conta que talvez estejamos numa mudança de paradigmas, que nos faz caminhar bravamente por novas sendas, e que os desconfortos que sentimos aqui e ali são parte do caminho, e não retiram dele nada de sua beleza. É impressionante verificar o quanto de calma também nos chega, de certezas e de aconchego, estes que não encontrei aos 16 anos.
Talvez nessa mudança, o meu amigo que ficou "inutilizado" profissionalmente pudesse então encontrar um novo espaço de atuação, que abarcasse novas dimensões do ser e da riqueza que ele carrega consigo.
A coleção de entraves e de endurecimentos desde então talvez tenha se materializado em mim nas pedras da vesícula que agora preciso operar. E estes mesmos entraves, que colocamos quanto ao que fazemos, estão sendo, aos trancos e barrancos removidos a cada dia, pela percepção renovada e pelas sinalizações dos anjos. Me dou conta, ao mesmo tempo, que talvez seja necessário, para nos convencermos, passarmos a poder materializar algo que nos assinale um marco, como a praça do Baobá, e outros santuários da natureza na urbe, que sejam como diamantes a lapidar nossa sensibilidade. Que Fátima possa podar a mata-jardim, para que flores renasçam, que eu plante uma nova roseira, ou que, simplesmente, possa ouvir e ver melhor a natureza para acolher e ser acolhida, em todos os passos da vida.
No fim, terminei a meditação com uma consulta a Telma, o que fez com que apressasse as iniciativas para uma provável operação da vesícula, a qual ela me ajudou a ver como mais uma poda, para poder reflorir e frutificar. A linguagem com que ela me passou isso tinha a mesma vibração da que ela aconselhou a poda para Fátima...
Resta-me apenas agradecer as pedras do caminho que me fizeram chegar até aqui, e depois de tudo, ainda quero voltar às aulas de violão.